Assassinato de Clitemnestra por Orestes, relevo de um sarcófago romano do II sec. d.C. (São Petersburgo, Hermitage A 461)
Às vezes eu me pergunto mentalmente “quem são vocês?” em relação aos homens da minha família, imaginando todo o caminho percorrido por eles de século em século até este ponto da história onde me encontro na intersecção entre vítima do que fizeram comigo e sujeito da transformação que eu quero daqui em diante. Eu me pergunto... mas acabo de crer que as memórias impregnadas nas minhas células conhecem o cheiro dos pedófilos de cor há milênios. Entre seus sucessores no reino dos estupradores de crianças, há os príncipes que se contentaram em jogar escondidos o jogo do poder sexual sobre crianças e há aqueles que levantam a bandeira da pedofilia criando toda sorte de teorias para justificar o comportamento sádico dos pedófilos. Os da minha família são a primeira opção. São menos poderosos mas não menos perigosos para as crianças. Os que representam a primeira opção dedicam suas vidas à causa, como Richard Gardner, um pedófilo cujo legado na literatura inclui o seguinte trecho: "Pedofilia é positiva para a sobrevivência da espécie humana, servindo para fins de procriação". Richard Gardner foi um herói dos pedófilos. Morreu como todos eles deveriam morrer: por suicídio depois de ter sido descoberto. Eu sei com meu corpo, com meu desafeto, meu raciocínio e minha memória. Eu sei quem vocês são. Vocês são nada, não representam nada senão o pior lado da humanidade, mas se sentem donos do Tempo e do Espaço e vivem para controlar ambos, roubando terras, fazendo pessoas de objeto de satisfação de seus fetiches sádicos sobre poder enquanto elas são por vocês sacrificadas ainda em vida para que vocês possam reinar absolutamente com seus poderes de assassinato e estupro de mulheres e crianças. Vocês, meus ancestrais, vivem em cada homem que ainda hoje se sentem reis, donos das meninas a ponto de sequestrá-las e forçá-las ao casamento devido à vulnerabilidade que vocês mesmos criaram com estupros. Ainda sinto o cheiro do sangue dos partos de minha avó paterna. Quatorze anos ela tinha no primeiro. Quatorze anos quando foi estuprada, engravidada, destinada a uma vida de servidão para ser enterrada como louca. Por vocês, que pregam a pureza. Foram vocês que mataram a dona Dora de desgosto. Todos os que vieram antes e os que vieram depois. Pai, avô, tios, primos, da minha avó. Todos os que deixaram uma menina ser estuprada por um homem que estava para ser mandado para a guerra e a deixaram se casar com ele aos quatorze anos mataram a minha avó pouco a pouco, comprimindo seu coração como comprimem o meu. Era para meu avô ir à II Guerra Mundial. Poderia ter morrido, minha avó teria vivido outra vida, eu não existiria e minha mãe poderia não ter tido filhos, pois nunca foi de sua vontade pelo que me contou. Mas o seu Benedito Orestes ficou. E assim, a minha família paterna teve origem. Meu bisavô, Ângelo Orestes, tirou meu avô do avião que estava quase partindo para a guerra porque meu avô era “arrimo de família”.
“Arrimo de família.”
Tipo estrutura da família, a que a coloca em pé. No sentido financeiro da coisa, de detenção de capital. A vida do meu avô mereceu ser salva das situações de guerra por causa de uma gravidez em decorrência de um estupro que ele cometeu contra a minha avó em 1949, quando ela tinha apenas quatorze anos de idade, em plena II Guerra Mundial, quando o exército brasileiro lutou ao lado dos aliados contra a Alemanha Nazista. Orestes... esse sobrenome que desde pequena maldigo, afirmando-o uma maldição por ver minha mãe e minhas tias paternas sofrendo violência doméstica, todas, sem exceção. Institucionalmente, o sobrenome Orestes indica ao Estado, às instituições e aos outros homens que sou propriedade de um patriarca descendente de italianos. O mesmo sobrenome que minha avó foi obrigada a carregar junto com as bebedeiras e com os murros do meu avô. O sobrenome é grego. Significa “aquele que habita as montanhas”. À procura de conhecer mais de perto meus ancestrais, ainda que por metáforas, procurei registros antigos deste nome e dei de cara com a Trilogia de Orestes, do dramaturgo grego Ésquilo. Ter concluído minha graduação e conquistado meu canudo de professora de literatura nunca foi um privilégio acessado em vão. Sempre busquei sentido e busquei também dar sentido para que suas raízes não fossem perdidas e isso nem sempre envolveu trocas financeiras. Quase nunca. Meu trabalho como redatora sempre foi uma consequência da minha paixão pela linguagem e, à margem da necessidade de ganhar dinheiro escrevendo, eu nunca deixei de lado a busca por ser autoral e escrever sobre o que eu realmente queria. O meu trabalho não-remunerado como escritora e professora de literatura é muito mais significativo pra mim do que o remunerado. O sonho é ser remunerada pelo que existe de melhor em mim, que é costurar a história, preencher lacunas e fazer o legado das escritoras brasileiras subir, honrando as que vieram antes. Como escreveu Clarice Lispector, quero que a Língua Portuguesa chegue ao seu máximo em minhas mãos. Interpretar a realidade e escrever sobre ela são as minhas maiores habilidades, desenvolvidas por mim desde antes da escola. Eu não usaria todo o meu potencial se submetesse minha escrita à necessidade financeira.
Sempre houve essa parte intocada, a parte onde o dinheiro não chega, não alcança, não compra e nem vende. Vocês, meus ancestrais do sexo masculino, nunca saberão qual a sensação dessa energia telúrica subindo da terra para o seu útero e se transformando na energia vital que move a força de trabalho de uma mulher, não para a reprodução ou cuidados maternos, mas para produzir o tecido de sua escrita, fiando a história como uma aranha tece sua teia. Curando milenares feridas. Fêmea. Assim como eu não consigo nem imaginar qual a a sensação de ser detentor da propriedade de um corpo ou de um território e poder usá-los de forma irrestrita. Fico com enjoo ao pensar nesse poder pois ele foi a vida toda usado contra mim. Nunca invejaria o poder fálico de um domesticador. Nunca invejei o poder do falo, como costumam dizer sobre as mulheres que expõem violências masculinas para difamá-las. Nós, mulheres e homens, fêmeas e machos, tivemos educações completamente diferentes para que fôssemos, assim, as mulheres subordinadas aos homens ao longo dos milênios. O militarismo que conheço intimamente conseguiu dividir a humanidade pelo sexo e propagandear as diferenças até que elas fossem assimiladas e transformadas em verdades absolutas, teorias, pseudociência, tudo para manter as fêmeas caladas, reproduzindo em cativeiros chamados ”famílias”. Do latim famulus, servos domésticos. Minhas ancestrais presas no Gineceu e vocês fazendo alianças entre si, educando uns aos outros, se apaixonando uns pelos outros, naturalizando o estupro de meninos por mestres - pederastia - e incentivando-os a fazer o mesmo com outros meninos quando se tornassem adultos, matando uns aos outros, conquistando territórios e sequestrando mulheres para fazerem de escravas trancafiadas no Gineceu e amarradas à cama. Minhas ancestrais indígenas sequestradas de suas aldeias e vocês escrevendo romances para condenar a existência de Iracema - e de todas as meninas indígenas - ao olhar fetichista do colonizador. Eu sei quem vocês são.
Sabem quem grita de dentro de mim para se fazer ouvida? Vocês sabem. Estrategicamente vocês soterraram a história de Clitemnestra. Mãe de Orestes, Clitemnestra realmente viveu. Não foi mera personagem de ficção, mitologia, representação. Era mulher de carne e osso. Vocês sabem onde fica seu túmulo. Vocês são os responsáveis por sua morte. Clitemnestra era irmã gêmea de Helena de Troia. Sacerdotisa da lua, cultuava Ártemis, deusa da caça, da virgindade e protetora das florestas. Um arquétipo censurado que remete às mulheres que se armam para proteger crianças, caçar estupradores e defender territórios de usurpadores. Paro por um momento para ler a última frase que criei e me identifico imediatamente com o sacerdócio das mulheres que protegem meninas do estupro e territórios de invasões. Clitemnestra foi sequestrada pelo rei Agamenon, um famoso herói da literatura clássica e líder do exército da Grécia contra Troia. Pariu quatro desse sequestro seguido de casamento forçado: Ifigênia, a primogênita que deveria sucedê-la no sacerdócio; Electra, outra menina; Crisótemis e Orestes, o único macho que, no decorrer da sádica e repetitiva tragédia grega, mata a própria mãe. O matricídio de Orestes é o marco inicial dos julgamentos como conhecemos hoje. O crime cometido por Orestes ambienta a origem da expressão que conhecemos por “voto de Minerva”. Explico sobre isso mas adiante. Antes, uma reflexão. É impossível não ligar meu sobrenome, Orestes, a essa história e Clitemnestra - a mãe assassinada pelo filho -, a mim, minha avó paterna, minhas tias paternas e minha mãe. Nós todas parimos crianças do sexo masculino que levaram o nome “Orestes”. Eu ligo meu sobrenome a essa história sabendo que talvez essa ligação não seja sanguínea. Provavelmente não é. Meu objetivo é preencher esse vazio da minha história, um vazio provocado estrategicamente aqui na América Latina. O que eu queria, mesmo, era acessar as memórias das minhas ancestrais indígenas. Não posso. Vocês apagaram tudo. Exterminaram meu/nosso contato com a memória matrilinear materna. Então é isso. Não é que eu acredite em reencarnação e que eu seja a reencarnação de Clitemnestra ou qualquer ingenuidade do tipo. Sou materialista demais para pensar dessa forma. É que existe uma certa mágica viva na linguagem, no desenrolar da fala ou da escrita: a mágica da descoberta e do espanto diante de estruturas narrativas de três milênios atrás tão semelhantes à estrutura social do tempo presente. As bruxas sabem bem. Trago outros movimentos para o tabuleiro, colocando as cartas na mesa diante de vocês e deixando este xeque-mate aos meus ancestrais. Clitemnestra vive porque apesar de todo o sofrimento provocado pelos homens de sua época, ela era branca. Minhas ancestrais indígenas não tiveram o mesmo destino.
Por que Orestes matou a própria mãe? O primeiro registro real/mitológico de um processo jurídico trata-se de uma censura à ordem vigente na época, uma ordem que permitia que deusas fossem celebradas a partir de simbologias próprias das fêmeas humanas. Orestes matou a própria mãe porque Clitemnestra matou o rei, seu pai, para fazer justiça diante do assassinato da primogênita de ambos. Seu marido, o rei, assassinou sua filha. Não existia julgamento. A justiça era feita com as próprias mãos. Aquela que sucederia a Clitemnestra no sacerdócio foi morta pelo próprio pai, então o dever sacerdotal de Clitemnestra era buscar a justiça por sua filha e pelo que o sacerdócio representava: a proteção à memória matrilinear. Conta-se que Ifigênia foi sacrificada pelo pai, o rei Agamenon, líder militar da Grécia, para que forças divinas dissipassem a impossibilidade de ele conduzir, pelo mar, o exército grego com o objetivo de recuperar a “propriedade” sobre Helena, raptada pelo príncipe de Troia. O sacrifício de Ifigênia obriga sua mãe, Clitemnestra, a agir em defesa de sua linhagem. A mãe deveria buscar justiça pelo derramamento de sangue de sua filha-sucessora e proteger o legado das mulheres do poder irrestrito de propriedade dos homens que dava a eles o direito de matar pessoas da família sem punição. Assim, Clitemnestra, que é representada na obra de John Collier (1882) com seus trajes gregos segurando uma labrys - símbolo de resistência sexual feminina usado até hoje por mulheres que amam mulheres -, decapta o rei. Orestes, único filho macho, não reconhece como legítimo o sacerdócio da mãe e comete matricídio em nome do Patriarcado, que, naquela época, buscava cada vez mais ascensão por meio da destruição do afeto entre mães e filhas ou de mulheres umas pelas outras, inclusive engajando-se em exterminar nações compostas exclusivamente pelo sexo feminino: as Amazonas da Ásia, da Europa e da África que também cultuavam suas próprias deusas fora do domínio da ordem masculina. Do além-túmulo, conta a mitologia clássica que Clitemnestra clama pelas Fúrias, três deusas da cor da terra que protegem as linhagens matriarcais, mas cujas simbologias foram demonizadas e atribuídas à vingança, o castigo e o rancor, afastando as mulheres do acesso à real simbologia dessas tríade divina. Atendendo o chamado de Clitemnestra e julgando-o legítimo, as Fúrias saem à caça de Orestes para que a justiça divina seja feita.
"As Fúrias atormentam Orestes" embranquecidas pelo artista de William-Adolphe Bouguereau_(1825-1905). “
Bloqueadas pela deusa Atena, as Fúrias são enganadas pela promessa de que um templo seria erguido a elas se as três aceitassem que, em vez de elas realizarem a justiça como tradicionalmente faziam, perseguindo Orestes até a loucura, passassem por um processo de julgamento pela condenação ou absolvição do réu e, caso houvesse empate entre os juízes – todos homens -, Atena desempataria com seu voto. E foi o que aconteceu. Com a desculpa de que Atena – Minerva em Roma - havia sido criada da cabeça de Zeus e não de um útero materno, a considerada “deusa da justiça” afirma que não havia ligação de sangue entre mãe e filho, portanto aquilo não era um “crime de sangue” e que Orestes deveria ser absolvido por matar sua mãe. Para Atena, por ter sido criada da cabeça de Zeus e não parida por uma fêmea, o único vínculo de sangue familiar se dá entre pai e criança. A peça de Ésquilo ambienta o cenário propício para a manutenção de um imaginário produtor da naturalização do pátrio poder: pacto sexual de propriedade entre homens e Estado que faz das fêmeas objetos de reprodução sem possibilidade de qualquer outro significado social. O pátrio poder é o poder de vida e morte dos homens sobre sua "famulus", ou seja, seus "servos domésticos". Essa expressão é presente na construção psíquica dos homens e nos Estados até hoje. É o maior motivo para o feminicídio. Chamam de crime passional. É crime de ódio, de uma homem que se sente tão dono de uma mulher a ponto de tirar sua vida. O templo para as Fúrias, prometido pela deusa Atena, nunca foi erguido, o que culminou no esquecimento ou demonização das deusas terrenas, soterradas pelo Estado Patriarcal cujo nascimento nos remete ao crime de matricídio que acabo de contar para reavivar sua memória e impedir que se perpetue o silêncio sobre a milenar condição das fêmeas.
Vocês, meus ancestrais, tinham como objetivo o extermínio completo desse sistema de significação insubmisso à ordem patriarcal. Quase conseguiram roubar meu pertencimento histórico à linhagem sáfica. Foram quase três décadas alienada deste pertencimento que recupero a cada palavra que tomo de volta para escrever a história que vocês quiseram apagar. Vocês roubam a existência e a identidade de muitas mulheres, geração após geração, milênio após milênio. Vocês não querem que as mulheres saibam que todas nós, todas, sem exceção, só plantamos nossos pés sobre este planeta porque úteros de mulheres do continente africano nos trouxeram para ele. Vocês demonizaram as religiões de matriz africana por isso. Porque elas são a origem da Criação humana que vocês invejaram a ponto de destruir para colocar a mentira de que viemos da costela de um homem no lugar. Vocês temem tanto a potência de um sistema de significação insubmisso à ordem branca e masculina que fizeram e tudo para colonizar a história da humanidade propagandeando a irracionalidade hormonal das fêmeas e supervalorizando a racionalidade bélica de vocês através dos milênios. Propagandeando a supremacia branca para apagar que a origem de toda a humanidade é feminina e negra. Vocês levaram muitas de nós, direta ou indiretamente, de todas as etnias. Foi muito sangue derramado e muita mãe chorando a morte e a separação de suas filhas e filhos. Vocês perseguem e tentam apagar a história de resistência sexual das fêmeas com calúnias, difamações e ameaças milenares. Vocês institucionalizaram o sequestro e o estupro de mulheres com o casamento forçado que, na Grécia Clássica, acontecia entre homens de trinta e meninas de dezesseis. Assim como hoje. Mesma estrutura social. Vocês romantizaram o sequestro de Helena e de tantas outras mulheres através dos milênios até hoje, contando suas histórias pelas lentes dos colonizadores e impedindo mulheres de ler e escrever para que não pudéssemos contra-atacar. Vocês institucionalizaram o estupro de crianças e naturalizaram essa realidade usando a mídia como arma, repetindo a mensagem tantas vezes a ponto de fazer a sociedade se anestesiar e não se importar. Vocês querem mulheres como reprodutoras. Meninas como reprodutoras. Obrigadas à reprodução e ao casamento. Vocês conseguiram. São mais de meio milhão de crianças casadas no Brasil. Oitenta e oito mil delas entre dez e quatorze anos, como fizeram com a minha avó. E vocês fazem de tudo para culpar as pessoas que não fazem sexo reprodutivo - lésbicas, homossexuais - pela existência da pedofilia no mundo. Com isso, vocês desviam a atenção de vocês, os verdadeiros estupradores, e ainda conseguem fazer a sociedade perseguir quem representa um perigo para o privilégio sexual de vocês. Quem faz sexo não reprodutivo é um perigo. Vocês querem mulheres reproduzindo. Vocês querem meninas reproduzindo. Por isso vocês matam homossexuais. Para que continuem condicionando a sociedade a naturalizar a fêmea como objeto de reprodução e o macho como o varão que popula os territórios conquistados por seus soldados. É por causa de vocês que o Brasil é o 4º país que mais casa crianças no mundo e isso não tem nada a ver com homossexualidade e sim com a masculinidade.
Só que vocês não são imortais mesmo com tanto poder. E não exterminaram as bruxas, mesmo tendo nos jogado à fogueira e tirado grande parte do nosso poder. Lidem com isso. Um dia o Sol explodirá e engolirá a Terra e todas e todos voltaremos a ser pó de estrelas, integrados à ela, natureza, de onde tudo vem e pra onde tudo volta. Ela. E-la. A história não será eternamente controlada pelo sexo masculino. Tal controle é anti-natural, já que até da língua somos mães. Vocês podem até matar mulheres com aborto criminalizado e de tantos outros jeitos todos os dias, física e simbolicamente, para que continuemos reproduzindo para vocês. Mas nunca poderão matar a mensagem raiz que fica impressa na tessitura da história das mulheres por meio da nossa resistência. Vocês dependem de nós para o nascimento de mais seres humanos sobre este planeta e não podem nos exterminar, nós somos a raiz do PIB, usadas por vocês desde 1500, desde a menarca para povoar a pátria com estupro e casamento forçado de meninas de dez, onze, doze, treze, quatorze anos como minha avó. Foi o que vocês fizeram mandando os italianos pra cá para embranquecer "e desenvolver o país" - como se isso só fosse possível com mais gente branca aqui - e impedir que as pessoas que vocês escravizaram fossem empregadas em boas posições, trabalhando de igual para igual com vocês. Eu sou filha de uma estratégia nazista do Estado brasileiro. O estupro foi a arma supremacista que vocês usaram para povoar com a genética branca esse território usurpado das mulheres indígenas. Esse território sobre o qual parimos, "mães-gentis", sem direito de decisão sobre nossos corpos, as próximas gerações de mão-de-obra que sustentaram e sustentarão o Capital, o Estado e o ócio dos homens brancos. Passado, presente e futuro giram junto com nossos ciclos lunares a partir de nossos úteros, hoje propriedade do Estado, mas não para sempre. Não para sempre. Nossos ciclos foram por vocês difamados como impuros, como nojentos, sendo a menstruação o único sangue que deveria verter, esse sangue que escorre entre nossas pernas, sangue da vida que vocês tentaram demonizar e nos obrigaram a esconder e odiar. O sangue que verte de vocês vêm da morte. Não cria nada, somente destrói. A chama do conhecimento acerca da sexualidade feminina e a nossa ligação com a terra nunca será apagada por completo enquanto a última bruxa ainda estiver viva. Nós ressuscitamos de cada fogueira. Assim foi e assim será desde o início até o fim da humanidade. A humanidade passa, invariavelmente, pelo útero. Nada pode apagar essa realidade. Sempre formos e sempre seremos a onda do futuro e nenhuma máquina poderá nos copiar. Aos Orestes que são sangue do meu sangue, saibam: os estupradores de crianças das gerações anteriores dessa família não tiveram ninguém que os peitasse, infelizmente. Mas o que estuprou uma criança da idade do meu filho vai ter de lidar com a minha escrita furiosa. O poder de vocês sobre mim acaba aqui.
Sem amor,
Natacha Orestes aka #ProjetoHisteria
Uma mãe lésbica