Enquanto participava da curadoria, criação e da produção executiva da campanha de divulgação do Festival Sáficas Resistem, um festival de arte para celebrar a visibilidade da cultura lésbica que aconteceu em agosto de 2018, tive a oportunidade de, finalmente, entrevistar a Stela Silva aka Cha,o Palaço Selva, para escrever essa matéria para o site do movimento #MulherArtistaResista.
Nós duas nos conhecemos em 2017, em uma fila em frente ao centro cultural Ação Educativa, no centro da cidade. Era lançamento do documentário Eu sou a próxima, editado pela artista Taynara Bruni em conjunto com a coletiva feminista Luana Barbosa. Selva estava lá, na fila, declamando seus poemas e distribuindo suas zines. Acompanhada do meu filho que na época tinha quatro anos, fiquei encantada com o palhaço e peguei uma zine. Nos encontramos outras vezes depois, em encontros de resistência indígena promovidos por mulheres indígenas e tive o prazer de realizar algumas aulas de sua oficina de palhaçaria de rua no Cha do Padre, Sé.
Em julho de 2018, Stela indicou uma roda de conversa promovida pelo #ProjetoHisteria em minha casa a sua amiga do Operárias da Arte, Larissa Gonçalves, que trouxe consigo Sara. Um mês depois, eu e a Larissa estávamos com força total nos empenhando para a realização do Festival Sáficas Resistem, no qual Cha, o Palaço Selva, realizou um pocket show.
Leia o bate-papo que tivemos dias antes do Festival Sáficas Resistem!
O que é a ganância? - Stela pergunta - e, de imediato, responde visceralmente poética: é uma bandeira estendida onde a gente vai cuspindo com a simplicidade.
MAR: Como você começou na palhaçaria?
Stela: Foi em 2013, durante o meu envolvimento com galera da resistência de arte urbana que na época ocupou a Escola de Bailado pelo movimento Anhangabaroots. Admiradora e fã de Chaplin, nesse ano me dispus a fazer uma homenagem ao mestre: encontrei minha bengala, uma calça 48 e, em julho, me pintei de palhaço pela primeira vez. Nessa época, nem em sonho imaginava que viveria da palhaçaria como faço hoje.
MAR: Junho de 2013 foi quando o Brasil começou a pegar fogo politicamente. O que você tem a dizer sobre política?
Stela: Ato de resistência não é votar e sim fazer política como eu gosto de fazer, no dia a dia, nas ruas. No dia da eleição, o palhaço vai chamar um churrasco para acabar com essa coisa de todo mundo votar em ladrão.
MAR: Fale um pouquinho sobre o Cha, o Palaço Selva.
Stela: O Cha é um palhaço contemporâneo que, como tal, não tem a menor obrigação de fazer seu público rir. Aos adultos, o que importa é levar minha mensagem. Já com as crianças, a risada flui naturalmente e com elas sempre aprendo muito.
Na antiguidade eram os Palhaços que alegravam os reis, muito corajosos e astutos falavam as verdades sobre o império opressor e arrancava risadas do rei sem medo de morrer. Palaço, por outro lado, é um nome que veio da interação com uma criança que ia e vinha atrás de mim chamando: “Palaço, Palaço, Palaço”. O nome Selva nasceu das intervenções “ÍNDIO NA CIDADE”, que traz conscientização e retomada da ancestralidade com poesias indígenas e conscientização ambiental. Durante minhas intervenções, sou confrontada e repreendida por ocupar o espaço público com minhas narrativas que enaltecem a natureza. Cha, o Palaço Selva, já foi questionado sobre o motivo de não falar sobre a bíblia, como se em meu discurso a divindade “natureza” não estivesse sempre presente. Quem presenciou o acontecimento viu de perto um palhaço chorar.
MAR: Você se sente estigmatizada pelas pessoas ao seu redor devido às suas decisões?
Stela: Eu sempre fui estigmatizada como “louca” por não caber nas expectativas das pessoas. Desde quando morava em Manaus eu já era chamada de aventureira. Mas existe, por trás do “palhaço louco”, uma mãe solo que enfrentou de um tudo para manter sua autonomia. Aos 27 anos, assumi que minha sexualidade abraçava e até mesmo preferia relações com mulheres.
Eu imaginava que se eu ficasse em Manaus, seria pior. Eu era mãe solo, não podia morar com meus pais. Me libertei da religião e da culpa. O externo é só uma nuvem que passa. Quando meu filho completou 12 anos conversei com ele sobre minha sexualidade sua aceitação até hoje me faz fortalecida.
MAR: Do que você mais gosta na sua caminhada?
Stela: O que mais gosto em minha caminhada é a simplicidade. Meu palhaço é a minha criança. Simples. Verdadeira. Transparente. Todas as lutas nos levam para a batalha. O palhaço torna a resistência mais leve. O que eu grito com a arte é que ela não pode ser elitizada. A arte precisa ser para todo mundo. Sem mazelas. Poucas pessoas têm o privilégio de assistir a uma peça de teatro. Minha arte, então, é na rua. Corpo a corpo. E não permito que ninguém me dite como devo me comportar como artista, mas quando estou com a máscara, presto atenção à liberdade do outro também, não somente na minha, para não ser invasiva ou inoportuna. Certa vez, em Paraty, cidade do Rio de Janeiro em que acontece a FLIP, famosa feira de literatura, caracterizada de palhaço com minhas vestes simples e rasgadas, permiti ao palhaço Chá que risse da ganância dos transeuntes, demonstrando seu descontentamento com a elitização da arte presente naquele evento. O que é a ganância? - Stela pergunta - e, de imediato, responde visceralmente poética: é uma bandeira estendida onde a gente vai cuspindo com a simplicidade.
"Meu palhaço é a minha criança. Simples. Verdadeira. Transparente. Todas as lutas nos levam para a batalha. O palhaço torna a resistência mais leve."
MAR: Como foi isso de, de repente, dar uma guinada na vida profissional e investir na palhaçaria?
Stela: Antes de me profissionalizar como palhaço, eu trabalhava como educadora em uma empresa de telemarketing. Em 2015, pedi as contas para viver de arte. Empreender foi uma ruptura. Uma aventura. A decisão de empreender transformou minhas relações e trouxe muitas perdas. Antes do empreendedorismo havia apoio. Depois, só humilhações por parte da minha companheira. Chegava em casa vestida de palhaço e minha ex perguntava se havia conseguido algumas moedinhas em tom irônico, ácido, para machucar mesmo. No sentido do mercado, a partir do momento em que você começa a trabalhar com arte, não tem mais como caber no mundo. Quando as empresas me contratam, elas geralmente querem intervir na minha arte, forçando a barra para que a oficina saia do jeito dos contratantes, que não é como eu quero ensinar. Não houve um caminho pré-determinado, mas o fluxo me levou para o caminho da arte-educação. Em 2016, entrei no Operárias da Arte para dar forma a uma oficina de desenvolvimento de escuta para Mulheres em situação de rua com Larissa Gonçalves, minha parceira de arte com a oficina “FALA GUERREIRA” dentro de um espaço 90% masculino. Na época, conheci as pessoas que trabalhavam no espaço e me pediram um projeto de palhaçaria. Era um período em que eu estava na rua de domingo a domingo, até que iniciei a oficina de palhaçaria e comecei a frequentar SLAMs e saraus, o que tornou meu trabalho mais visível entre arte-educadores que passaram a me convidar para ministrar oficinas. A oficina foi encerrada pela metade na troca de gestão do município. Em julho de 2017, a oficina de Palhaçaria foi aprovada no Cha do Padre “ONG Sefras” com duração de um semestre e já está em sua terceira edição.
MAR: Como é viver da palhaçaria?
Stela: Quando se vive de arte é preciso ser “multi”. A palhaçaria é muito grande e abre um leque de possibilidades. Eu mixo habilidades para viver da minha arte. Além de ser arte-educadora também sou artesã e zineira, realizo intervenções artísticas e poéticas em parques, escolas, praças, aparelhos públicos como CTA, na fundação CASA e em hospitais. Sou idealizadora e realizadora do projeto “Palhaçaria de rua”, que desenvolve a Palhaçaria de forma itinerante com a ELP – Escola Livre de Palhaços do Cha. O desafio de ser artista de rua está na remuneração. As pessoas precisam entender que não estou na rua para pedir, estar na rua é o meu trabalho. O chapéu que passo para arrecadar doações após as intervenções é minha carteira de trabalho. É assim que eu gostaria que as demais pessoas enxergassem meu chapéu também. Certa vez realizei um trabalho na cracolândia para pintar de palhaço o pessoal que fica naquela região. Quando pisei lá, senti que era ali que deveria estar. Lá é onde a sociedade é excluída e marginalizada. Foi emocionante me aproximar das mulheres da cracolândia que nunca haviam sido pintadas. Acredito que a arte aproxima e reintegra.
MAR: O que é empoderamento pra você?
Stela: O discurso midiático explora nossas mazelas. A fortaleza que é a cultura ancestral é desvalorizada. É preciso estreitar vínculos com as mulheres originais dessa terra, aprender com elas. Empoderamento não é qualquer decisão individual que se tome, como aprendemos na TV e nas revistas, mas sim a construção de uma rede crescente e plural de mulheres.
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