A sequência de fatos que sucedem uma denúncia de estupro merece a atenção das mulheres que se afirmam como ativistas pelos nossos direitos sexuais e reprodutivos. Nenhuma de nós está imune à naturalização do estupro, desde as mulheres mais politizadas às que sequer sabem ler. O sistema patriarcal literalmente penetrou e moldou nossas mentes de forma a não ajudarmos nem a nós mesmas quando somos vitimizadas, quanto mais umas às outras. Somos, sim, ensinadas a nos enxergar como rivais para que não alcancemos nosso potencial de unidade contra o poder da cultura do estupro. Não saber como agir após uma violência sexual ou diante de um caso próximo de estupro é uma pedra no caminho da nossa resistência. Uma pedra que pode fazer qualquer uma de nós tropeçar nos próprios pés. Uma pedra que precisa ser explodida dentro de cada uma de nós para desobstruirmos nossa jornada rumo a uma vida livre das violências masculinas.
A quebra do silêncio, na maior parte das vezes em que uma mulher atravessa o medo e deixa fluir suas emoções por meio de sua voz, desencadeia uma desconfiguração na normalidade de suas relações mais próximas. A normalidade é a vítima em silêncio. Uma vítima de estupro que não se cala traz, junto com seu grito de dor, uma ruptura nessa normalidade e essa ruptura agita o mar de silêncio nas outras mulheres que aprenderam a normalizar o silêncio. Por romper com a normalidade e cutucar feridas antigas, a vítima passa a ser percebida como agressora. Isso não beneficia nenhuma mulher, só beneficia os estupradores, que se mantêm impunes. A sobrevivente que não se cala descola a casca dura dos silêncios das outras mulheres e faz feridas antigas que pareciam fechadas doerem novamente. As feridas estavam lá, só estavam anestesiadas. O grito de uma sobrevivente pode despertar uma comunidade inteira da anestesia. Parte do processo de despertar é a negação dos próprios traumas. O ódio mal direcionado erra o alvo, deixando os responsáveis pelo crime livres e culpabilizando as vítimas. A normalidade empurra os traumas para debaixo do tapete.
Tomamos tarja preta porque não somos incentivadas a pensar essa normalidade. Pensar poderia nos levar à solução do problema, o que o sistema patriarcal quer evitar e evita ao oferecer alívio imediato em forma de comprimidos que nos impedem de elaborar nossas vivências. Não é uma crítica a quem precisa dos comprimidos, é uma crítica ao sistema que nos torna dependentes deles. Pensar a normalidade dói. Fazer o caminho inverso da naturalização das violências sexuais dói, dói revisitar o que aprendemos a perceber como “normal” mas que, na verdade, era violência. Mas não há possibilidade de luta contra a cultura do estupro além de usarmos a dor como matéria-prima para fabricarmos, coletivamente, o antídoto social que trará as estruturas patriarcais abaixo.
Precisamos olhar para além da dor. Precisamos transformá-la em luta, fazendo da arte uma ferramenta para mantermos a sanidade enquanto lutamos contra um sistema que só nos quer sujeitas, submissas, objetos, nunca sujeitos. As narrativas artísticas das mulheres que resistem à cultura do estupro são uma maneira de nos afirmar como humanas, não como uma subespécie humana, inferior, segundo sexo. Precisamos nos reconhecer como as criadoras originais da realidade humana, precisamos reconhecer o sequestro das narrativas das mulheres ao longo dos milênios para tomarmos uma atitude coletiva em relação às perseguições políticas que as sobreviventes de estupro experimentam quando decidem que não darão continuidade ao ciclo de silêncio a que fomos submetidas na História. Como mulheres latinas, originárias de uma terra que já abrigou centenas de nações originárias a que os colonizadores chamaram Brasil. A resistência das mulheres por aqui não é de hoje. Precisamos nos conectar com as memórias de nossas ancestrais. Que a arte nos guie pelo caminho da resistência.